Uma História Ambiental Negra das Palmeiras

Palmeira no Brasil (Shutterstock)

Leia a tradução em inglês deste ensaio aqui.

[Uma breve leitura da palma da mão com Landscapes of Freedom por Claudia Leal (2018), Raspando Coco por Pilar Egüez Guevara (2018), Palmares por Gayl Jones (2021), Palm Oil Diaspora por Case Watkins (2021).]

Coqueiros (Cocos nucifera) ajudaram no acolhimento de Almeyda em Palmares, um famoso quilombo ou comunidade de africanos e afro-brasileiros fugidos da escravização. Como uma jovem escravizada no nordeste brasileiro ao fim do século XVII, Almeyda cresceu ouvindo sobre Palmares e ansiando vivenciar algo desconhecido: liberdade. Dada a opção de leite de vaca ou leite de coco ao adentrar no quilombo, ela escolheu ambos por estar com sede. Ela, entretanto, cuspiu o leite de vaca e bebeu apenas o leite de coco, introduzindo assim a segunda parte da narrativa adentro do quilombo dos Palmares, onde ela já era [mais] livre.

Almeyda é a protagonista ficcional no belo e oportuno romance histórico Palmares de Gayl Jones. Sua personagem também representa incontáveis jovens mulheres escravizadas de descendência africana que lutaram por liberdade nas Américas. Então, qual o significado dos coqueiros? [Plantações escravistas ou liberdade?]. Dado o posicionamento dos coqueiros por Jones em um momento crucial da narrativa, podemos imaginar os cocos e coqueirais tendo um significado mais amplo nos esforços de pessoas negras para sobreviver e se tornarem mais livres? Em geral, Jones usou “palmeiras” de forma não descritiva que provavelmente se referia as paisagens de palmeira pindoba (Attalea humilis) que dominavam as florestas que resguardavam Palmares. Mas quando ela menciona coqueiros (em ao menos 31 páginas), eles criam cenários condutores de ação: óleo para cozinhar e curar, leite para beber e fazer caldos, e algumas vezes secos em flocos para comer. Muitos destes momentos envolvendo coqueiros foram também momentos de esconderijo, rebelião e cuidado. Às vezes, esta planta parecia apoiar as possiblidades de escravidão e liberdade simultaneamente.

Recentemente outros poucos trabalhos revelam a história ambiental negra das palmeiras nas Américas. As geógrafas Claudia Leal e Case Watkins focam seus estudos na palmeira marfim (Phytelephas) e no dendezeiro (Elaeis guineensis), respectivamente, e a cineasta e antropóloga Pilar Egüez Guevara se dedica aos coqueiros. Das cerca de 2.500 espécies na família Palmaceae, estas 4 variantes – pindoba, coco, marfim, e óleo de dendê- compartilham uma história botânica da diáspora africana sendo explorada por acadêmicos e vivida ativamente por muitos de nós.

O livro de Claudia Leal, Landscapes of Freedom, acompanha a história ambiental da formação do campesinato negro antes e após a emancipação nas planícies costeiras do Pacífico colombiano. Investigando um período semelhante a Leal, mas em uma região próxima a Palmares, o livro de Case Watkins, Palm Oil Diaspora, destaca “[o óleo de dendê] como um conceito analítico e agente material para contar a história ambiental da diáspora africana” nas paisagens de dendê na Bahia, Brasil. Por fim, bem ao sul das planícies negras da Colômbia, o filme de Pilar Egüez, Raspando Coco, retrata os desafios atuais do cotidiano de fazendeiros de coco e cuidadores Afro-Equatorianos na costa pacífica das Esmeraldas, Equador. Parafraseando Leal, esses trabalhos utilizam palmeiras para analisar transições na liberdade negra como parte da construção do estado moderno na América Latina.

Para Watkins, as paisagens de óleo de dendê na Bahia são monumentos vivos da diáspora africana. O óleo de dendê tem ao menos 5 mil anos de história na África Ocidental, desde a Senegâmbia até Angola e adentro da bacia do Congo, onde o óleo de dendê domesticado seguia os padrões de ocupação humana ao longo dos ecótonos da savana. Incontáveis culturas autóctones da África ocidental coevoluíram com este óleo, integrando-o em práticas culinárias, sanitárias e espirituais. No contexto do tráfico transatlântico de escravizados, Watkins demonstra como muitos portos escravistas foram históricas feitorias comerciais de produtos de dendê, como sabão e óleo para lanterna. Traficantes portugueses de escravizados usavam óleo de dendê durante a travessia transatlântica para alimentar os cativos escravizados e besuntarem seus corpos antes dos leilões de venda. O estado colonial encorajava a plantação de dendezeiros para satisfazer as necessidades da colônia por combustível vegetal, e alguns cultivadores manipuladores até permitiam escravizados de continuar praticando rituais com esse óleo. Entretanto, como Watkins argumenta, o dendê ajudou a facilitar o poderio colonial tanto quanto ajudou pessoas anteriormente escravizadas a criar e empunhar o poder deles. Costumeiramente, os brasileiros até hoje chamam óleo de palma de “dendê”, apesar que muitas vezes nem sabem por qual razão já que tão naturalizado este termo se tornou no vocabulário nacional.1

A raiz etimológico do óleo de dendê dos brasileiros é em referência/homenagem a palavra kimbundu “ndende,” uma recordação que a influência africana e afro-brasileira tinha em definir a paisagem em ambas as margens do atlântico

As paisagens do dendê da Bahia são relações multiespécies que historicamente resistiram a monocultura. Estas paisagens não se assemelham as plantações de açúcar e cacau, mas assumem a forma de bosques semi-silvestres ou emergentes que dependem de outas espécies como abutres e manguezais. Assim como na África Ocidental, abutres são disseminadores vitais de sementes de dendê nos mangues comunais da Bahia. Em vez de aderirem as lógicas e objetivos coloniais, os emergentes pomares de dendê são “paisagens culturais” que são “expressões da criatividade diaspórica e socioecológica.” Usando os trabalhos de Sylvia Wynter e Stephanie Camp para enquadrar as paisagens do dendê enquanto pequenos atos cotidianos de resistência, Watkins mostra o dendê enquanto produto comunal que representa subsistência “ancestral e ecotonal” e estratégias espirituais. Colonialismo e racismo não poderiam preparar o cenário para a violência extrativa sem semear, simultaneamente, as condições para a liberdade ambiental negra. “Roça” foi uma vez um termo utilizado para “lotes de terra para escravizados,” mas agora se refere a qualquer pequeno campo ou jardim que seja propriedade de pessoas negras na Bahia.

A exploração de Claudia Leal das palmeiras de marfim vegetal também segue histórias ambientais diaspóricas desde a escravização até a emancipação. Para Leal, a floresta tropical ajuda a explicar por que as terras baixas do Pacífico se tornaram a “maior área das Américas habitada primordialmente por negros”. Começando pela mineração de ouro, o que inspirou os colonizadores espanhóis a guerrearem contra comunidades indígenas e a removerem africanos das suas comunidades originárias, Leal insiste que as práticas de extração aurífera diretamente promoveram a formação de comunidades negras. Devido a mineração de ouro ser nitidamente fluvial e os rios portadores de ouro serem poucos e distantes entre si; os colonizadores organizavam mineradores de ouro escravizados em gangues chamadas “cuadrillas,” quadrilhas. Por razão do isolamento, essas quadrilhas gozavam de certo grau de autonomia, que por fim “evolui na unidade social básica nas terras baixas” e centrais para compras de alforrias. Além disso, a associação das quadrilhas com um rio ou bacia hidrográfica em particular informava a identidade e pertencimento coletivo a um lugar.

A sede colonial por ouro trouxe muitos africanos escravizados para essa região. Entretanto, a biogeografia das palmeiras explicar a existência de uma migração interna negra. Como a mineração deu lugar para a agricultura no século XIX, a Colômbia se tornou um dos maiores exportadores da palma de marfim vegetal para fabricação de botões, alças de guarda-chuva e peças de xadrez. Já que a palmeira marfim apenas cresce em poucos lugares das terras baixas, a formação e a migração de camponeses negros, anteriormente escravizados, se encontram perfeitamente juntos as ecologias das palmeiras. Assim como coletores de dendê no outro lado da bacia amazônica, os coletores de palmeiras de marfim mantêm pequenos lotes de terras e jardins, assim como práticas de manejo florestal. Mais do que transformar paisagens coloniais de extração em meio de subsistência mais afirmativos e abundantes para esses coletores, Leal demonstra que a marginalidade ofereceu camponeses negros a liberdade de mudar “paisagens racializadas” em territórios culturalmente significativos e com direito de propriedade aos negros. A constituição de 1886 da República Colombiana não reconheceu o direito dos camponeses negros, mas por ocuparem paisagens de palmeiras marfim, “[camponeses negros] foram escritos na paisagem.”

Até mesmo após a onda de constituições que reconheceram os direitos territoriais de Afrodescendentes na década de 90, comunidades negras de cultivadores de palmeiras ainda enfrentam muitos desafios nas Américas. 2 O filme Raspando Cocode Pilar Egüez detalha a centralidade dos coqueiros na subsistência local de afro-equatorianos, na economia nacional, no capitalismo global, e nas tensões entre essas três escalas de análise. Egüez primeiro introduz a abundância de conhecimento, história e vida refletida e gerada pelas relações entre coqueiros e afro-equatorianos em Esmeraldas. Coqueiros constituem em parte essencial da tradição cultural dessa região e sua economia política. Afro-equatorianos trabalham como cultivadores de coco, raspadores de coco, e produtores de numerosos derivados de coco. Pratos como ensopado de coco inspiram avós a manterem jardins cheios de ervas, complementando e acentuando os sabores do coco e da costa. Palmeiras de coco crescem acompanhando o mangue, e juntos, elas apoiam micro ecologias repletas de uma biodiversidade de vida selvagem e cultivo domesticado de cacau, abacate e arroz.

Coqueiros não garantem ao cultivador de coco acesso ao mercado ou suporte industrial. 3 Raspando Coco mostra as dificuldades de se viver da produção de coco, principalmente o ato de raspagem. Poucos produtores têm os recursos ou suporte para manufaturar produtos finalizados e desejáveis aos consumidores urbanos. Alguns desses mais preferidos óleos de coco nem mesmo são óleo de coco, mas sim óleos minerais com fragrância de coco. Companhias internacionais de processamento alimentar fazem bilhões a partir da popularidade dos cocos. Contudo, apenas uma parte dos lucros chega nas mãos dos produtores em Esmeraldas. Ironicamente, os cultivadores são mais sucessíveis a sentir o peso das perdas de lucro quando a popularidade do coco decai, como em 2017, quando autoridades médicas nos Estado Unidos da América começaram a se perguntar se a alta quantidade de gorduras saturadas no óleo de coco causa problemas cardíacos. O coco desde então reconquistou seu espaço no mercado enquanto um superalimento global, no entanto, o fardo da produção e risco recai diretamente nas costas de produtores de patrimônios e comunidades como as em Esmeraldas.

Parafraseando a paleoclimatologista Lina Pérez-Ángel, nós precisamos de novos arquivos da natureza para contar as histórias ambientais dos trópicos. Nas terras baixas tropicais, a maioria das árvores não possuem anéis de idade dentro de seu tronco, pois eles não passam por um período de inverno em que o tecido de crescimento do tronco fica adormecido e deixa um anel. As palmeiras pindoba, coqueiro, dendezeiro e marfim podem não ter anéis de árvores para nos ajudar a compreender as histórias ambientais dos trópicos, mas a sua proximidade com a diáspora africana oferece um vislumbre da história das paisagens racializadas e diaspóricas.

  1. O uso do óleo de dendê é fortemente associado a culinária e cultura do estado da Bahia, onde há maior concentração da população negra do Brasil. Porém, o uso da nomenclatura dendê para se referir a óleo de palma é difundida nacionalmente, em especial nas regiões costeiras de sul a norte onde pratos como o vatapá, o caruru, e a moqueca tem dendê como ingrediente insubstituível.
  2. Para mais, leia Kiran Asher, Arturo Escobar, Eduardo Restrepo, Karl Offen, Ulrich Oslender, e Paula Satizábal.
  3. Minha tese de doutorado também revela um padrão semelhante através do cultivo de coco e a reforma agrária na zona costeira do estado de Guerrero, Mexico no século XX. Para mais, checar “Making the Coast Pacific: Oilseeds and Environmental Violence and Justice in Guerrero and Sinaloa, 1900-1960” (PhD, Northwestern University, 2022).
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Jayson Maurice Porter translated by Manoel Rendeiro Neto

Jayson Maurice Porter is an environmental historian of race, violence, and justice in Mexico, the United States, and the Americas. His dissertation focused on the environmental violence caused by oilseed-based agriculture, agribusiness, and agrochemicals in Guerrero and Sinaloa, Mexico. Porter is a Voss Postdoctoral at the Institute at Brown for Environment and Society (IBES), a research fellow at Noria Research's Mexico and Central America Program, and an editorial board member of the North American Congress on Latin America (NACLA). He likes to write curricula and stories that make people want to go outside and think critically and carefully about their environments. Manoel Rendeiro Neto é bacharel e licenciado em História pela Universidade de Brasília, e mestre pela Universidade da Califórnia Davis. Atualmente, Manoel é doutorando em História da América Latina com especialização em Estudos da Diáspora Africana pela Universidade da Califórnia Davis. Sua pesquisa de doutorado centra-se no papel do conhecimento ambiental na construção de impérios, estratificação étnico-racial e territorialização autónoma na emergência de uma Amazônia Afro-Indígena c.1750-1850.